Conto | A História de Como Deus me Causou Insônia

Divulgação | Mundo dos Heróis 


“Pensem nas coisas lá do alto, e não nas que são aqui da terra” - Colossenses 3:2

Sim, foi ontem. Ontem aconteceu o que muitos esperavam. Deus apareceu e anunciou o fim do mundo. Sim, Deus. Qual Deus você se pergunta. Não sei dizer. Mas era Deus. Não há dúvidas. Todo olho o viu.

Não dormi nada, minha mãe muito menos, acredito que ninguém..., mas o que foi isso que presenciamos ontem à tarde? Não restavam dúvidas, arrependam-se enquanto podem. Até que Deus foi misericordioso, fez questão de nos avisar, mas não disse quando iria voltar novamente. Só desceu dentre as nuvens e quase como se fosse um astro, fez seu show à parte. Quem diria: a segunda vinda de Cristo foi somente uma rápida visita, podia ter mandado uma carta..., mas acho que a Bíblia já é isso...

ATO 1 – ME CONVENÇA

Não tinha muito o que fazer, soube de pessoas que estão a mais de horas ajoelhadas orando, a qualquer momento um raio pode cair do céu para suga-las, quem sabe né. Não passa outra coisa no noticiário, o pânico foi instaurado, mas ao mesmo tempo um sentimento de “finalmente” existe no ar. Para muitos que se preparavam, isso só era o esperado, afinal já estava descrito com todas as letras no livro de Apocalipse. Eu não esperava.

Sou filha única, mas não costumava ser. Já tive uma irmã (que Deus a tenha), ela partiu pra nunca mais voltar, agora eu e minha mãe nos revezamos em casa, fazendo tarefas e saímos as vezes de tarde para passear na praça com Romeu, nosso cachorro. Eu fazia o curso de Línguas Estrangeiras, mas acabei desistindo no caminho, não era bem o que eu queria, mas era o que tinha no momento. Agora em busca de um emprego, já não sei mais o que fazer, apesar de muitos continuarem a viver a suas vidas normalmente, outros se entregaram ao ostracismo e simplesmente desistiram de trabalhar, comer ou se divertir, desistiram até de ser gente.

Mas aqui nessa cidade, nem a unanimidade é unânime, existe ainda uma certa dúvida, mas para uma minoria seria o ‘Projeto Blue Beam’ sendo ativado. Uma tal teoria da conspiração de que a Nasa iria simular a volta de Cristo em nome de uma nova ordem mundial, isso é coisa de vídeos na internet. Espero que não dessa vez.

ATO 2 – O TAL DO FEIJÃO AZUL

Depois de um show de horrores que vi no centro da cidade, cheguei em casa e corri para tomar uma ducha, depois de cobrir minha mãe com um lençol, fui para o quarto e me tranquei lá. Ah, a internet..., como diria Bo Burnham: “Qualquer coisa que seu cérebro possa pensar pode ser encontrada”, coitado, acharam morto em um acidente de carro há uma semana. Aparentemente perdeu o controle e bateu contra um poste perto de sua casa, Deus causou isso? Muitos dizem que sim, o suicídio virou uma opção para muitos infelizmente, ledo engano dessas pobres almas.

Depois de uma rápida pesquisada, descobri mais sobre o tal projeto conspiratório da Nasa, uma pequena teoria que invadiu os quatro cantos da internet e virou uma espécie de esperança. Ironias da vida, passei por um vídeo desses um tempo antes da “Insônia Divina” e ignorei como sempre fazia, agora lendo tudo isso, continua absurdo demais. Entrei em um reddit americano de teorias da conspiração e usando meu inglês de primeiro período, fiz uma pergunta: “What is your opinion about Blue Bean?”. Dei uma longa risada quando li os comentários, pessoas falando que não podiam opinar pois nunca tinham comido tal feijão, sem entender fui pesquisar e me surpreendi com tamanha burrice minha. Acontece que “Bean” é feijão em inglês, o certo era “Beam” (feixe, em inglês). 

ATO 3 – A INSÔNIA DIVINA

Deitei na minha cama e fechei os olhos pensando no que fiz naquele fatídico dia, era tudo tão bom. Tinha saído no começo da tarde para encontrar uma amiga de longa data no shopping, no caminho ela mandou mensagem e disse que não podia ir, me arrumei e saí de casa para nada. Na volta, decidi encostar em uma barraca de lanche e pedi um pastel, quando fui dar a primeira mordida, acabei sujando minha blusa de ketchup. Desastrada.

Depois de pagar o lanche, peguei minha bicicleta e continuei voltando para casa. Moro perto do shopping, mas distância nunca foi problema para mim. Ah, meu nome é Niray a propósito. Estranho e belo como minha mãe queria, mas fazer o que, né!?

Enfim, ao chegar em casa não encontrei a minha mãe, talvez tenha saído para perto pois o portão não estava trancado. Quando tirei meus tênis, pude sentir a brisa entre meus dedos e então deitei e dormir. Sabe aquele momento que você acorda depois de um sono da tarde e acha que já é de manhã cedo? Pois foi isso mesmo que eu queria que tivesse acontecido, infelizmente continuei dormindo.

E aí, aconteceu. Meu sonho foi interrompido por um clarão, era como se eu estivesse acordada e vi claramente uma silhueta vindo na minha direção, fiquei em choque com o que via, não conseguia piscar. Senti algo sendo sussurrado no meu ouvido e então acordei de verdade. Abismada com o sonho, corri para contar a minha mãe e pude ouvir os vizinhos gritarem na rua, corri para a porta e encontrei o filho do vizinho sentado no sofá olhando para parede, como se tivesse vendo ou visto algo ali, perguntei pela minha mãe e ela veio da cozinha assustada. Não parava de perguntar se eu estava bem e tratei logo de acalma-la, então fui para a porta e o que vi nunca esquecerei, as pessoas corriam desesperadas de um lado para o outro em pânico, pediam misericórdia e brigavam entre sim.

Voltei para dentro de casa e liguei a tv, mas muitos canais estavam fora do ar, apenas um solitário programa continuava ao vivo, os apresentadores olhavam estáticos uns para os outros e depois saiu do ar. Estávamos ali sem respostas, corri para o quarto e peguei meu celular, tinha várias mensagens de parentes e amigos. A única mensagem que chamou a minha atenção foi de Carla, a amiga que tinha furado comigo mais cedo, ela me falou que acabara de sofrer um acidente, o carro em que estava bateu em um poste, mas só o motorista de aplicativo morreu. Acontece...

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ATO 4 – AQUELE QUE TEM UM OU MAIS FILHAS

Caos. Em resumo era isso que eu via na cidade, ironicamente muitos se acharam no direito de invadir propriedades e de saquear lojas. Nem a polícia podia controlar, a cidade logo foi tomada pela insegurança, o que poderíamos fazer a respeito? Fugir não era uma opção para mim e minha mãe, pelo menos não no momento.

Faz dois dias que meu pai ligou para casa e não tivemos mais notícias desde então, minha mãe é muito preocupada com ele mesmo separados, existe um certo respeito entre eles, afinal o que Deus uniu ninguém separa. Ontem à noite mandei mensagem para ele, mas nunca obtive resposta.

Do jeito que está a cidade, nada mais justo que o prefeito esteja atarefado, nem imagino o que ele está passando, algumas pessoas dizem que ele simplesmente fugiu e partiu em direção ao interior do estado sozinho dentro do seu carro. Pra muitos o prefeito fugiu mas para mim, ele já havia fugido a muito mais tempo, como pai.

ATO 5 - NÃO É HOLLYWOOD, MAS É O SUCESSO

A “Ilha do Amor”, como apelidamos São Luís, se transformou na “Ilha do Medo”. Seria a segunda, pois já tem uma ilha com esse nome aqui do lado, aquela lá é melhor de se viver, não tem pessoas por lá.

O que vi nesses dias aqui na cidade me fizeram repensar meus atos e o que eu tinha feito de bom durante todo esse tempo, imaginei Deus com um caderninho anotando meus erros e acertos e parei para imaginar como minhas orações sempre foram egoístas. Não tenho o hábito de me ajoelhar, sempre achei uma forma submissa de se conversar com Deus, acho que por isso parei de ir à Igreja com minha mãe, apesar de presente nos cultos, eu já não estava totalmente ali, metade de mim já havia desaparecido.

A principal igreja na cidade, infelizmente se transformou em um encontro para suicidas, eles sobem até o topo e se jogam após alguns minutos ajoelhados. Em conjunto esforço para parar com isso, fiéis se juntaram e se trancaram dentro da igreja. Assim ninguém entra e ninguém sai, mas não existe obstáculo para alguém que quer tirar a vida.

Esses dias tem passado muito nos jornais nacionais (e até internacionais) sobre essa tal “Igreja dos Suicidas”, não é o tipo de fama que queria ver minha cidade tendo, mas não tenho o que reclamar, há problemas maiores para resolver no momento. Cheguei a me olhar no fundo de uma dessas reportagens, lá estava eu observando calmamente a loucura que era isso tudo, mal sabiam o que se passava aqui dentro.

ATO 6 - HÁ CADA DIA QUE PASSA

Faz uma semana desde a “Insônia Divina”, e estou mais acabada do que nunca, não durmo direito nem com remédios, tenho medo de tentar recorrer a doses maiores, tenho que ser forte por mim e minha mãe, ela só tem a mim. Ontem tentaram invadir nossa casa, mas só pararam porque um carro da polícia passou no momento certo, cada vez mais perigoso de viver aqui. Sugeri a minha mãe que procurássemos um abrigo para ficarmos juntos com outras pessoas, mas ela tem recusado. Essa recusa dela se dá ao fato de estar conformada com tudo que está acontecendo, ela acha que merece tudo isso, mas eu não penso assim. Cada dia a mais aqui na cidade tem sido uma tortura, infelizmente não sabemos quando Deus vai voltar, mas a verdade é que essa angústia tem nos maltratado, que lições eu posso tirar disso? Ser mais legal com os vizinhos ou pedir desculpas a minha ex? Se o objetivo aqui é ser uma boa pessoa, então eu acho que vou pro céu.

ATO 7 – ANOS DE AGONIA

Faz dois anos, MEU DEUS FAZ DOIS ANOS JÁ, aonde será que Ele se meteu ?

Desde aquele dia, as pessoas se tornaram cada vez mais paranoicas, amanhã vai acontecer a última viagem fretada de avião por ordem da ONU, um grupo de pessoas vai seguir de Senegal aos Estados Unidos e se abrigar em um bunker. Minha mente é meu bunker, infelizmente tenho que conviver com ela.

Hoje enterrei minha mãe no quintal de casa, ao lado de Romeu, tive muito mais trabalho do que imaginei, pois, a pá que usei para cavar a cova estava em péssimo estado. Peguei minha mãe nos braços, eu tinha vestido ela com as mesmas roupas que usou no dia do meu aniversário de 7 anos. Depois que o rosto dela foi coberto pela terra, caiu a ficha, minha mãe se foi.

Juntei minhas coisas e parti em retirada, peguei o último galão de gasolina que tinha e enchi o tanque do carro do meu falecido vizinho, no caminho eu olhei através do vidro e vi um pássaro bater em retirada para o sul, ele estava sem seu bando, solitário. Assim como eu.

Passei na casa da minha tia Ana para busca-la e a encontrei sentada na porta olhando para o céu, ela parecia ter visto algo. Desci do carro e fui em sua direção, ela olhou para mim e sorriu, disse que a grande hora já estava chegando e me convidou para entrar. Então começou a chover, não chovia há mais de 3 anos, seria aquilo um sinal? Interpretei que sim.

Depois de jantar um pouco, resolvi deitar para dormir. Quando durmo não consigo sonhar, minha fé me abandonou aparentemente, as ironias me perseguem. Acordei na madrugada e fui ao banheiro, encontrei minha tia do lado de fora da casa ajoelhada, ela estava de olhos fechados e braços abertos, corri para tira-la da chuva e quando a toquei ela simplesmente caiu no chão, como se sua alma tivesse saído do corpo. Sem entender nada e no meio daquela chuva resolvi entrar novamente e me deitei no chão da sala.

Eu só queria o fim daquilo tudo. Queria me livrar de toda aquela dor, eu já estava debilitada por causa da escassez de água e comida e resolvi então tirar minha vida, me levantei e fui até a cozinha pegar uma faca, fui novamente pra fora de casa e apontei a faca para os céus. Indaguei a Deus e busquei repostas, a chuva parou..., os céus se abriram. Eu me ajoelhei...

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